jats4r Conversion Vendor guri 1.0.0 5596 QUID 16. Revista del Área de Estudios Urbanos QUID 16 2250-4060 Área de Estudios Urbanos Argentina quid16@sociales.uba.ar Universidad de Buenos Aires, Facultad de Ciencias Sociales, Instituto de Investigaciones Gino Germani 10.62174/quid16.i22_a305 Dossier A reestruturação do espaço e a financeirização da infraestrutura no avanço das commodities The restructuring of space and the financialization of infrastructure in the advancement of commodities 0000-0002-7086-6534 da Silveira Yassu Alexandre Mitsuro alesdl@yahoo.com.br Conceptualización Curación de datos Análisis formal Investigación Metodología Administración de proyecto Recursos Supervisión Validación Visualización Redacción - preparación del borrador original Redacción - revisión y edición Universidade Federal do ABC https://ror.org/028kg9j04 , Brasil Julio-Diciembre 2024 22 a305 22 3 2024 30 10 2024 1 12 2024 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional. Resumo

A recente intensificação das queimadas na floresta Amazônica explicitam uma face do neoextrativismo no Brasil. O país parece repetir o Consenso das Commodities que atravessa toda a América Latina. A desindustrialização em curso desde os anos 1980 combinada com a expansão das atividades extrativas, minerais e agrícolas alavancaram a reprimarização da economia brasileira, que desde então vêm conduzindo a uma reestruturação do espaço nacional. Neste trabalho dedico-me a analisar as formas de provisão de infraestrutura logística, no contexto de privatização, financeirização e desnacionalização do setor. Desse modo, pretendo avançar na compreensão das transformações sócio espaciais em curso, com foco na região Centro Oeste do país, a partir das concessões da rodovia BR 163 e do projeto da ferrovia EC-170- Ferrogrão.

Abstract

The fires in the Amazon forest highlight the advance of neo-extractivism in Brazil, the country seems to repeat the Commodities Consensus that crosses all of Latin America. The deindustrialization underway since the 1980s, combined with the expansion of extractive, mineral and agricultural activities, boosted the reprimarization of the Brazilian economy, which has since led to a restructuring of the national space. In this work, I dedicate myself to analyzing the forms of provision of logistics infrastructure within the context of privatization, financialization, and denationalization of the sector. My goal is to deepen the understanding of ongoing socio-spatial transformations, focusing on the central-west region of the country. This analysis will be based on the concessions of BR-163 and the Ferrogrão railway project (EC-170).

Palavras chave Infraestrutura Financeirização Agronegócio Neoextrativismo Urbanização Keywords Infrastructure Financialization Agribusiness Neo-extractivism Urbanization Este projeto contou com financiamento da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior por meio de bolsa temporária e da Universidade Federal do ABC em auxílios específicos.
Introdução

Após um longo processo de 50 anos de industrialização no Brasil, registra-se, nos anos 1980, um declínio da participação da indústria na economia, resultado de um processo iniciado na crise da dívida dos países latino americanos e, nos anos 1990, uma queda mais pronunciada, reflexo das políticas de liberalização comercial e econômica. O novo cenário neoliberal e com dominância das finanças combinado à renovada expansão das atividades extrativas - minerais e agrícolas- alavancou a reprimarização da economia brasileira (Paulani, 2016), que desde então vêm conduzindo a uma transformação do espaço nacional, indicada, entre outras dinâmicas, na figura 1 que mostra a expansão do cultivo de soja no país.

Brasil: distribuição da produção de soja por municípios 1974-2022 none Fonte: Sidra- IBGE, 2024 elaboração própria.

A expansão renovada dos setores primário exportadores exige a compreensão do desenvolvimento das cadeias produtivas globais das commodities sob a financeirização, que revela novas formas de gestão do território lideradas por agentes hegemônicos globais. Na dispersão das cadeias produtivas, a circulação desempenha papel crucial, além da própria estruturação dos fluxos, dá suporte a expansão das atividades extrativistas, especialmente em projetos de infraestrutura logística que visam conectar áreas de produção e extração aos mercados globais. Esses empreendimentos envolvem a construção de estradas, portos, ferrovias e oleodutos, que não apenas formam as condições do comércio mundial, mas também influenciam significativamente os padrões de ocupação do solo, a distribuição populacional e as relações econômicas regionais. Os resultados são novas regionalizações, hierarquias espaciais e mecanismos de controle do território, sustentadas em novas formas de planejamento (Brenner, 2011).

É importante reconhecer que a circulação, estruturada pelas infraestruturas logísticas, não é apenas um facilitador neutro, mas também pode ser um catalisador de conflitos. A expansão destas infraestruturas quase sempre entra em conflito com os direitos territoriais e as práticas de povos originários e tradicionais, resultando em disputas sobre a posse da terra, o acesso aos recursos naturais e o impacto ambiental.

Todas estas dimensões ganham novos contornos com a privatização da infraestrutura que se inicia no país nos anos 1990 e se altera ainda mais com a atual financeirização da mesma a partir dos anos 2000. A entrada de agentes financeiros, suas métricas e parâmetros no setor tem promovido a transformação dos sistemas de provisão de infraestrutura, desde as instituições, passando pelas formas de financiamento, de gestão, de planejamento que impacta nas formas de distribuição, nos usos e os fluxos desejados em oposição às necessidades sociais e econômicas do país (Torrance, 2008).

A partir deste contexto este estudo busca compreender como os grandes projetos de infraestrutura financeirizados e produzidos como suporte da expansão das commodities são vetores da reestruturação do espaço nacional. Qual papel do Estado e das finanças? Como se transforma a provisão de infraestrutura? Quais são os agentes envolvidos e seus conflitos?

A partir destas questões, este artigo concentra-se na análise de três projetos de infraestrutura na fronteira de expansão da cadeia produtiva da soja no Norte do Mato Grosso. Dois trechos concedidos da rodovia BR 163 e no projeto de concessão da Ferrovia EC- 170- Ferrogrão, com traçado sobreposto no trecho norte acima de Sinop, ambos constituem o corredor logístico do Tapajós (Figura 2), juntamente com os portos de Miritituba na cidade de Itaituba no Pará. A metodologia de pesquisa envolve revisão bibliográfica sobre a financeirização da infraestrutura, a análise de dados secundários de produção do complexo da soja e do desmatamento, análise documental das concessões, visitas de campo, análise cartográfica e das notícias na mídia em geral e especializada no setor de transporte e do agronegócio na análise de tendências e dos conflitos ligadas ao desenvolvimento dos projetos.

Mapa dos corredores Logísticos estratégicos – Complexo soja e milho none Fonte: ANTT, 2017.

Para além desta introdução e dos apontamentos finais, este artigo organiza-se em três partes, a primeira que dedica-se a apontar as relações entre o consenso das commodities, o neo extrativismo e a logística; uma segunda parte em que trago aspectos sobre a financeirização da infraestrutura; na terceira apresento os projetos de infraestrutura específicos analisados.

O abismo da “única alternativa”: neoliberalização-financeira, austeridade e neoextrativismo

No atual contexto global de neoliberalização financeira impõe-se a agenda política do reestabelecimento do mercado como senhor de todas as decisões. Tal agenda seria uma oposição às “deformações” causadas pela intervenção do Estado Fordista Keynesiano na economia. No caso brasileiro, o Estado desenvolvimentista, assim, para correção destas “anomalias”, os espaços econômicos nacionais devem se abrir à globalização e aos agentes globais neste “novo” mundo.

Segundo tal cantilena entoada como mantra diariamente nos noticiários, a forma de inserção nesta ciranda é a adoção irrestrita do equilíbrio macroeconômico com superávit primário, metas de inflação, estabilização monetária e austeridade fiscal como “uma única alternativa” para o desenvolvimento econômico das nações. Entretanto, o retrato real é outro: tal agenda neoliberal no Brasil, implantada a partir dos anos 1990 no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, levou a um processo de desindustrialização devido, entre outros, ao aumento dos juros como parte da política monetária, à abertura comercial que engendrou uma intensificação da competição global desigual devido as limitações na capacidade de absorção do progresso técnico na periferia do capitalismo e pelas sucessivas crises, com grandes impactos sociais, como desemprego e desigualdade social (Paulani, 2013, 2016). Paulani evidencia este conjunto de reformas e ajustes como uma “inserção ativa” do Brasil no processo de financeirização global.

Ainda como reflexo desta “única alternativa” política e econômica, em meio à crise da indústria, o setor primário exportador ressurge, agora como único capaz de produzir o superávit primário necessário para equilibrar as contas e estabilizar a moeda (Pacheco, 1998; Paulani, 2016). Uma inflexão do processo de 50 anos de industrialização com largos impactos espaciais, que Araújo (1997) chamou de desintegração competitiva, a forma como a desindustrialização combinada ao fomento a espaços subnacionais competitivos, principalmente, ligados ao setor primário-exportador promove uma nova reestruturação sócio-espacial e econômica do país.

No ciclo anterior de industrialização, que suplantou a economia colonial como centro dinâmico da economia, a reestruturação foi caracterizada por uma “modernização conservadora”. Um processo combinado de desenvolvimento industrial, que, através dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND), construiu infraestruturas para dar suporte a expansão das atividades industriais e integrar o mercado nacional, assentadas no autoritarismo, na concentração de renda e de terras, aprofundando a desigualdade. Uma reestruturação produtiva e espacial que expulsou grandes contingentes populacionais do campo rumo às cidades, processo que gerou uma vertiginosa e precoce metropolização, marginalização e formas de urbanização precárias.

A desintegração competitiva, então, se deve a dissociação dos espaços competitivos globalmente em relação ao espaço nacional, focados na demanda externa e cada vez mais conectados ao exterior economicamente e fisicamente, em corredores logísticos de exportação. Diferentemente da indústria manufatureira, que tende a buscar a articulação produtiva de regiões, a integração e a formação do mercado interno. Portanto, a reprimarização é, em grande parte, sintoma da austeridade fiscal neoliberal e estabelece o consenso em torno da produção de commodities como parte da “única” alternativa política e econômica para o país, e que como resultado promove uma reestruturação do espaço nacional. Um pacto neoliberal conduzido pelo Estado em várias frentes, como forma de conter os conflitos socioespaciais e econômicos imanentes desta via de desenvolvimento.

O Consenso das Commodities formulado por Svampa (2015) para dar conta do processo que atravessa toda a América Latina no séc. XXI é do ponto de vista econômico, um acordo em torno do reestabelecimento de uma economia centrada no setor primário exportador, em grandes empreendimentos extrativos, sejam eles projetos de mineração ou grandes latifúndios monocultores, sempre com vistas a atender a demanda global, reafirmando uma inserção subordinada dos países latino americanos na nova divisão internacional do trabalho. Já do ponto de vista social o consenso se patenteia por um aprofundamento da dinâmica de despossessão, expulsão, espoliação de povos tradicionais e originário na expansão territorial e social das fronteiras como central na acumulação de grandes grupos e com alinhamento aos governos em diversas esferas.

A junção destas dimensões se plasma num desenvolvimento neoextrativista (Acosta, 2016; Gudynas, 2009). O neoextrativismo, termo que se disseminou nos últimos anos, além da dimensões citadas acima, desdobrou-se em uma série de outras, das quais destacamos: a) um projeto político de governos do campo progressista que buscaram articular a manutenção e a expansão dos ganhos dos setores primário-exportadores para o custeio da expansão das políticas sociais; b) a reestruturação produtiva do setor primário exportador, agora mais intensivo em capital em grandes empreendimentos, financeirizados e baseados em novas tecnologias de informação, de biociências, de máquinas, de logística e etc; c) uma noção expandida de extrativismo (Gago e Mezzadra, 2017), como uma série de práticas e operações do capital financeiro para adentrar e extrair riquezas de novos espaços através da constituição de novas formas de propriedade como patentes, mineração de dados, o microcrédito, os jogos on-line etc.

Em meio às diversas acepções de neoextrativismo, parece ser possível estabelecer que a financeirização seja transversal a todas elas, assim como já destacamos na relação entre austeridade e reprimarização. Desse modo para adentrar nas conexões entre a esfera da circulação, particularmente, da provisão de infraestrutura, e a reestruturação do espaço, temas centrais neste artigo, vamos nos deter a explorar certas dinâmicas da financeirização.

Financeirização e as ilusões do capital fictício

Na formulação marxiana sobre a transformação do dinheiro em capital, Marx (1985) problematiza a forma histórica do crédito, o comércio de dinheiro a juros. O capital portador de juros é o capital emprestado pelo capitalista monetário ao capital produtivo visando à produção de mais valor, sendo este remunerado por juros, parte da mais valia produzida. Entretanto, este capital portador de juros aparece como autônomo ao seu possuidor, que ao depositar no banco e receber após um tempo uma remuneração sobre a aplicação, tem a ilusão da “auto-valorização” do seu capital, aparentemente descolado da produção. Os diversos depósitos, em busca de uma remuneração (capital portador de juros), reunidos no banco e transformados em dinheiro de crédito/fiduciário, multiplicam o montante inicial, processo que cria um vale entre riqueza real (depositada) e a fictícia (retiradas - dinheiro fiduciário e títulos de dívida como representações do valor real).

A partir do desenvolvimento do sistema de crédito este vale se expande. Os títulos de dívida privada e pública, as ações são para Marx manifestações deste capital fictício, todas elas formas de propriedades jurídicas, que dão direito a um montante de riqueza na forma de renda (Paulani, 2016). A apropriação deste capital fictício se materializa através da capitalização da renda, no ato de transação do título. Neste ato a precificação do título se faz pela presentificação das rendas futuras (capital fictício) a que determinado título dá direito, ou seja, o montante emprestado acrescido pelos juros incidentes. Isto é, traz para o presente os pagamentos no futuro, ainda não existentes, portanto fictícios, movimento que amplia exponencialmente a riqueza fictícia (Carcanholo e Sabadini, 2009). Assim, surgem tensões das temporalidades entre a criação e a extração da riqueza. Klink (2023) faz uma conexão crítica do processo de presentificação do capital fictício ao conceito corporativo de Valor Presente Líquido (VPL), a presentificação das receitas líquidas, bastante utilizado como métrica financeira para avaliação e precificação de títulos.

O rompimento da cadeia de pagamentos destes títulos dispara o estopim destas tensões e abre a possibilidade de crises, no movimento dos preços em direção à base monetária, comprometendo a solvência dos títulos e explicitando os limites do capital fictício. A financeirização então seria marcada por uma intensa e imensa criação de capital fictício, criando tensões, crises e conflitos na sua gestão e nas suas demandas de riqueza real.

Na abordagem de Harvey (2013) a financeirização é resultado das contradições da acumulação no setor produtivo manifesta em crises de superacumulação de capital, que para tentar conter a mesma desloca capitais sobreacumulados para o setor financeiro em busca de novos espaços de aplicação lucrativos. A financeirização se apresenta, nesta perspectiva, em ajustes espaço temporais da crise, na combinação de processos imanentes e contingentes do desenvolvimento histórico do capitalismo.

Destas abordagens depuramos a centralidade do rentismo e dos ajustes espaço temporais na financeirização. O rentismo operacionalizado pelo estabelecimento de novas formas de propriedade como meios da extração de riqueza fictícia (Christophers, 2019; Paulani, 2016). E os ajustes espaço temporais, movimento do capital de explorar novas fronteiras, revolucionando as relações sociais de produção, tanto internamente dentro das fronteiras do capital, através de mudanças tecnológicas, nas formas organizacionais e de exploração do trabalho, como na expansão sobre espaços não mercantilizados, no que Marx (1985) chamou de acumulação primitiva, por meio, também, de novos produtos financeiros, numa noção expandida de extrativismo (Gago e Mezzadra, 2017).

Entretanto, as dimensões descritas se localizam em certo grau de abstração, concretamente é na relação entre estruturas e agentes se desenvolvem os processos, neste caso, é na entrada de agentes financeiros, com suas lógicas, práticas e métricas nos mais diversos setores da economia (Chesnais, 2002) que se desdobra o processo contestado e conflituoso de financeirização.

Na produção manufatureira a financeirização gera a partir dos anos 1970 uma reestruturação produtiva global. Com foco no valor do acionista, os grandes grupos econômicos, em análises contábeis, se desfazem de capitais fixos na busca por liquidez. Passam a adotar estratégias de fragmentação, terceirização e complementaridade da produção, expandindo a atividade fabril globalmente. Apoiadas pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e pela revolução logística, as multinacionais reorganizam sua produção globalmente em formas flexíveis de integração produtiva (Harvey, 1992), resultando em cadeias produtivas globais, isso também ocorre no setor de produção de commodities.

A partir do conflito capital trabalho nos países centrais, rompendo novas fronteiras de exploração do trabalho e da natureza pelo mundo, servindo-se da flexibilidade neoliberal nas legislações trabalhistas e ambientais. Desse modo, a lógica rentista explora novas fronteiras comprimindo os custos de produção e acelerando a mesma globalmente como parte das estratégias de sustentação do capital fictício expresso no “preço de mercado” das ações, tentando assegurar o valor aos acionistas e as rendas a serem extraídas.

A articulação do Estado neoliberal e as finanças em suporte ao desenvolvimento das cadeias globais reconfigura o planejamento integrado modernista transformando-o no planejamento de parcelas territoriais competitivas (Brenner, 2011). A infraestrutura, outrora concebida para a integração nacional e regional, visando solidariedade entre entidades e suporte à produção e reprodução da força de trabalho no espaço nacional, agora tende à fragmentação competitiva e globalizada (Brenner, 2011; Pacheco, 1998) para servir as cadeias de valor.

A infraestrutura logística, especificamente, nestas circunstâncias, integra-se cada vez mais aos processos produtivos, visando garantir a previsibilidade e eficiência dos fluxos. A implantação e a gestão de portos, rodovias e ferrovias são essenciais para assegurar a fluidez ininterrupta, e produzem novas paisagens que são condições para o comércio global, são partes escondidas do processo de urbanização, a urbanização planetária (Brenner e Schmid, 2013), que explicita em arranjos fixos os metabolismos globais que moldam a geografia econômica contemporânea. Todavia, além do requisitos do capital por novos arranjos fixos para sustentação da circulação de capital nas cadeias, o capital têm transformado as infraestruturas em ativos financeiros no processo de financeirização.

A infraestrutura transformada em ativo

Tradicionalmente, a infraestrutura econômica é vista como um componente vital para a produção e circulação de mercadorias e como infraestrutura social para reprodução da força de trabalho. A infraestrutura econômica é, na economia política, um capital fixo, uma fração que se imobiliza para acumulação de capital, caracterizado pela rigidez e longo tempo de amortização. No entanto, no atual contexto de neoliberalização financeira, ela é cada vez mais tratada como uma mercadoria em si, que no processo de privatização tende a se transformar em um ativo financeiro.

A entrada de agentes financeiros no setor de infraestrutura leva a uma reorganização das estruturas corporativas e das técnicas do setor, no esforço de transformar a rigidez e o monopólio territorial da infraestrutura em mercadoria, criando novas formas de propriedade (Fine et al., 2016) doravante FBR (2016). Essas mudanças têm consequências profundas na gestão e provisão da infraestrutura (Pryke e Allen, 2019).

FRB (2016) formulam a ideia de um sistema de provisão (SDP) para analisar as transformações nas políticas de habitação e de água e saneamento na Inglaterra no contexto da financeirização, isto é, a passagem de um sistema de provisão público pra um privado em termos gerais. O conceito de SDP tenta dar conta dos fatores sociais, políticos, econômicos, geográficos e históricos da provisão de um serviço ou bem. Com este objetivo, se dedica a dimensão concreta destes sistemas, através das categorias: estruturas, processos, agentes e relações. As estruturas são as formas institucionais de provisão, padrões de controle e distribuição. Os processos são as dinâmicas pelas quais os SDP são moldados na globalização, mercantilização e financeirização. Os agentes são os participantes da SDP, na produção e no consumo. As relações são as formas de interação das categorias anteriores, para analisar os poderes, os objetivos e as estratégias diferenciadas, é a dimensão de onde surgem os conflitos.

Para atingir os objetivos propostos neste trabalho entendemos a financeirização da infraestrutura como processo, que por meio de reformas neoliberais altera a estrutura estatal do sistema de provisão público, promovendo um hibridismo entre um sistema de provisão privado e financeiro, isso se desenvolve através da interação entre agentes financeiros, políticos, frações de capital interessadas e a resistência da população atingida. Destas relações emergem os interesses rentistas locais e globais, os conflitos pelo uso do fundo público, pela apropriação do território, dos recursos e da natureza.

A mercantilização da infraestrutura, por meio da privatização, é um passo fundamental para sua inserção nos circuitos financeiros, principalmente, pela transformação nas formas de funding e financiamento para subsidiar novos projetos, para manutenção e gestão das infraestruturas existentes. Isso envolve a criação de uma variedade de títulos lastreados na propriedade de infraestruturas. O Estado desempenha um papel crucial na normatização desses novos tipos de propriedade e na abertura do mercado para eles.

A modelagem financeira e a avaliação do risco financeiro tornam-se centrais na concepção e implantação de projetos de infraestrutura, deslocando o foco da tentativa de contenção do conflito social, capital-trabalho, no contexto fordista keynesiano para a contenção do risco financeiro (O’Neill, 2013; O’Neill, 2019). Codificadas por meio de métricas financeiras para serem comparados com outros ativos, às infraestruturas se liquefazem no mercado financeiro.

Uma destas métricas é o VPL como falamos acima. Klink (2023) ao analisar as relações entre Estado, dinheiro e o urbano, mostra como os planejadores atuam através de Parcerias Público Privadas para criar valores fictícios nas cidades, que podem ser apropriados por instrumentos financeiros vinculados à infraestrutura ou ao mercado imobiliário. São contratos de infraestrutura, por exemplo, lastreados na projeção de usuários e de renda por cobrança de tarifa, projeção que depende uma série de fatores para se realizar, se este cenário não se realiza desencadeia-se uma crise. Portanto, nestes contratos monta-se uma complexa matriz de risco que termina por isentar o privado dos prejuízos, socializando tais perdas. Assim, na concepção da infraestrutura passam a se definir quais cenários, usuários e fluxos são interessantes (lucrativos) ou não.

Esses novos arranjos operam através de uma série de taxas, tarifas e mecanismos de garantia financeira, e contenção de risco que podem levar a novas formas de expropriação do fundo público em favor dos capitais financeiros. Montam-se formas de governança global, por meio de normas e obrigações contratuais que reforçam assimetrias de poder político e econômico. Neste sentido, ela pode ser considerada antidemocrática, já que se desconecta localmente para se reconectar globalmente com agentes distantes, que tomam decisões sobre a provisão, gestão e acesso às infraestruturas (Torrance, 2008), com impactos espaciais significativos. Fragmenta-se a provisão das infraestruturas e criam-se relações desiguais e hierárquicas entre os territórios e os proprietários que extraem renda desses espaços.

Os projetos neoextrativistas e a financeirização da infraestrutura A BR 163 os dois ciclos da infraestrutura e os novos agentes

A rodovia BR-163, com extensão de 3579 km, corta o Brasil de norte a sul, do Rio Grande do Sul ao Pará. Aqui nos dedicamos ao estudo das concessões do trecho norte de Cuiabá no Mato Grosso até Santarém, no Pará, às margens do rio Tapajós. A rodovia tem o início de sua construção na ditadura militar, no governo Médici, nos anos 1970, no Programa de Integração Nacional, um plano de ocupação da Amazônia, com infraestrutura e projetos de colonização (Oliveira Neto, 2019). Em 2007, no mandato do presidente Lula, o governo inclui o asfaltamento do trecho norte no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), política nacional de provisão de infraestrutura logística, energética e social que marcaram os governos do Partido dos Trabalhadores. O asfaltamento do trecho norte foi alvo de muita resistência e palco de conflitos, que, durante o governo Lula, foi contornado temporariamente pela elaboração do Plano BR 163 Sustentável (ver [Link]), que articulou diversas organizações, movimentos sociais e representantes da sociedade civil em oficinas de elaboração de uma proposta mais inclusiva de desenvolvimento sustentável e de redução dos impactos da obra.

Em 2014 após a inclusão no Programa de Parcerias e Investimentos1, é feita a concessão2 federal ao setor privado do trecho entre os municípios de Itiquira (MT) e Sinop (MT), trecho com extensão de 850,9 km já asfaltados, para a Odebrecht Transport, no consórcio chamado de “Nova Rota do Oeste”. O consórcio tinha em seu Programa de Exploração da Rodovia (PER), documento que reúne os compromissos do concessionário, a exigência de duplicação de boa parte do trecho ao longo da concessão.

A Odebrecht Transport é braço de logística, mobilidade e rodovias do Grupo Odebrecht, empresa que já foi a maior empresa de construção civil do país. Ao lado da Camargo Corrêa, da Andrade Gutierrez entre outras, formaram o grupo das grandes empreiteiras do país que desde a ditadura, foram centrais no projeto desenvolvimentista dos anos 1960 e 1970 e constituíam um monopólio de provisão e gestão de grandes obras de infraestrutura (Campos, 2014). Durante os governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), elas assumem um novo protagonismo na agenda de provisão de infraestrutura, diversificando suas operações. Entretanto, a empresa, atingida pela Operação Lava-jato3, não cumpre os termos contratuais e acumula dívidas na gestão da concessão. Entrando num embate com o governo do Estado do Mato Grosso e com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável pela concessão, já a partir de 2016 com dificuldade para captar recursos e custear o contrato. Para evitar a caducidade do contrato a empresa entra em acordo e faz a devolução amigável da concessão que é assumida pelo governo do Estado do Mato Grosso em 2022 na figura da MT-Participações, ligada ao gabinete do Governador. O consórcio deixa para o Estado uma dívida de quase 1 bilhão de reais com bancos e apensas 10% da duplicação acordada no PER executada, espólio assumido pela MT-Par, que apesar de ser uma sociedade anônima de economia mista, tem como parte majoritária de seu capital o Estado do Mato Grosso. O salvamento da concessão pela MT Par indica novas dimensões de acesso e manejo do fundo público por entes privados (ver [Link]), neste resgate, mas também no suporte financeiro a modelagens de privatização e concessão.

A Operação Lava-jato gerou enormes impactos no setor de infraestrutura e de engenharia nacional, levando todos os grandes grupos a processos de recuperação e reestruturação pela venda de ativo, endividamentos com multas e outras sanções. A operação marcou a quebra do monopólio destes grandes grupos nos grandes projetos de infraestrutura do país e de outro lado aprofundou a desnacionalização do setor, tanto nas novas obras e concessões como pela aquisição dos ativos das grandes empreiteiras endividadas e punidas pelas multas da operação Lava Jato (Campos, 2019).

O processo de reestruturação do setor fica flagrante na concessão do trecho norte da rodovia entre Sinop (MT) e Miritituba (PA), que teve seu asfaltamento iniciado no governo Lula, em 2009, é foi concluída concluída no governo de Jair Bolsonaro em 2019. Concedida, ao Consórcio Via Brasil, formado pelas empresas Conasa infraestrutura SA, Zeta Infraestrutura SA, Construtora Rocha Cavalcante Ltda, Engenharia de Materiais Ltda e M4 Investimentos e Participações Ltda. Todas as empresas fora do círculo dos grandes grupos.

A Conasa é uma empresa de Londrina (PR) criada 2004, para atuação no setor de saneamento, atuando em apenas em pequenos municípios, em 2016, amplia suas atividades para o setor de energia e de rodovias e em 2021 tem parte significativa de seu capital comprado pelo fundo de investimento verde norte-americano, Generate Capital Public Benefit Corporation. A Zetta infraestrutura é uma empresa da holding J&F investimentos do grupo JBS, maior multinacional do país do setor de alimentos que estrutura este novo braço do setor de infraestrutura através da contratação de ex-executivos da Mendes Júnior e da OAS, grandes empreiteiras atingidas pela Operação Lava-Jato.

Podemos registrar na trajetória das concessões da BR-163 a ocorrência de um movimento de reestruturação do setor em dois ciclos. Um ciclo petista neodesenvolvimentista marcado por uma agenda de provisão de infraestrutura em várias escalas, fomento a indústria e aos setores neoextrativistas, com centralidade das grandes empreiteiras e suas subsidiárias em grandes obras, e um segundo ciclo no governo Temer-Bolsonaro, com apropriação estrangeira dos espólios da Operação Lava Jato, obras e concessões incrementais executadas por novas frações de capital nacionais e internacional, como fundos ligados a investimentos “verdes”, podendo indicar novas dinâmicas dentro do setor.

Outra dimensão importante nesta reestruturação é a necessidade avançar nas análises sobre o VPL dos contratos e seus impactos socio-espaciais. Numa análise inicial foi possível registrar que ambos contratos tomam como pressuposto do cálculo de receitas o aumento da produção e do escoamento de grãos. Além disso, no contrato do do Consórcio Via Brasil foram feitas emissões de debêntures incentivadas4de infraestruturas, em 2022, lastreadas nas receitas do contrato, um mercado de títulos secundário, que multiplicam os capitais fictícios a serem apropriados.

Em resumo, é possível afirmar que as operações financeiras em torno da gestão dos consórcios ao tomarem como base de suas projeções financeiras a ampliação da produção da produção articulam-se as formas de produção do espaço alteração do uso da terra, onde a floresta é destruída para constituição de latifúndios para o cultivo de grãos ao longo das rodovias (ver Figura 3 e Figura 4), resultando na intensificação de conflitos fundiários na região (Figura 5). Historicamente, no Brasil, a expansão do latifúndio é relacionado ao desmatamento, agora sob a lógica financeira da presentificação da renda, estes grupos estão se apropriando de rendas no presente de um cultivo em áreas a serem desmatadas no futuro e por isso lutam contra qualquer regulação ambiental como forma de barrar o contínuo avanço de suas atividades (ICL Noticias, 16 julho de 2024 [Link]). Entretanto, é complexo atestar uma alteração quantitativa deste processo histórico atribuída entrada das finanças, mas qualitativamente os mecanismos de presentificação do futuro devem se mais explorados em seu funcionamento e em seus impactos.

BR 163 Trecho Norte- Desmatamento nos estados do Pará e Mato Grosso, por munícipio por período de 4 anos none Fonte: Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite, 2024, elaboração própria. Polígonos de queimadas, Territórios Indígenas, Unidades de Conservação e Rodovias no Pará e Mato Grosso none Fonte: IBGE e Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite, 2024, elaboração própria. Conflitos fundiários por município em 2020 none Fonte: Comissão Pastoral da Terra, 2023, elaboração própria
4.2 Ferrogrão: o projeto em gestação

A Ferrogrão é um projeto ferroviário no norte do Brasil. A ferrovia segue o mesmo traçado da rodovia BR-163, mas surge como projeto nos anos 1990, como um dos trechos da Ferronorte, ressurgindo nos anos 2010 como componente da estratégia logística denominada Arco Norte, visando a expansão da capacidade de escoamento de commodities na região norte e nordeste. De maneira específica, a Ferrogrão constituirá o eixo de exportação ferroviária, no corredor logístico do Tapajós. Esta ferrovia, com extensão de 933 km, faz a conexão da região produtora de grãos no Centro-Oeste até os portos de Miritituba, situado à margem direita do rio Tapajós, em Itaituba, no Estado do Pará, no meio da floresta amazônica (Figura 6). Tal empreendimento visa consolidar o vetor de expansão da fronteira agrícola do norte do Mato Grosso em direção ao Pará e atende a demanda do agronegócio por uma infraestrutura de transporte de carga de alta capacidade.

Traçado Ferrogrão none Fonte: Apresentação Audiencia Pública n° 014/2017 – Sessão de Brasilia/DF.

A proposta da Ferrogrão surge no ano de 2012, quando a empresa EDLP (Estação da Luz Participações) foi contratada pelas multinacionais do agronegócio, as trading globais (Amaggi, Bunge, Louis Dreyfuss e Cargill), para conduzir estudos e pesquisas sobre a viabilidade técnica do projeto, os quais foram posteriormente apresentados ao Governo Federal sob a forma de Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI)5, uma forma planejamento corporativo do território criado no aprofundamento da privatização da infraestrutura. O projeto foi desenvolvido em parceria com a Climate Bond Initiative [Link]. Segundo explicação do à época ministro da infraestrutura Tarcísio de Freitas em evento sobre a Ferrogrão, promovido pelo jornal Valor Econômico:

O projeto foi desenvolvido com a Climate Bond Initiative, possibilitando a captação de “green bonds” e reduzindo em 50% a emissão dos gases do efeito estufa: vai retirar 1 milhão de toneladas de CO2 da atmosfera da Amazônia. Além disso, o projeto passa exclusivamente na faixa de domínio da BR-163/MT, não cortando qualquer terra indígena. (MTR, 2021)

Em um marco significativo, a Ferrogrão foi incluída no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) em 2016, mesmo com a viabilidade ambiental, social e econômica indefinida e contestada, demonstrando o poder político e econômico dos grupos interessados no projeto.

A análise governamental foi designada à autarquia pública federal Empresa de Planejamento e Logística (EPL), hoje INFRA. Com o avanço dos estudos é previsto que a construção e a gestão sejam concedidas pela Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), pelo prazo de 69 anos. O projeto está inserido no Plano Nacional de Logística (PNL 2035) e no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em agosto de 2023. Nas projeções elaboradas a ferrovia seria capaz de transportar até 52 milhões de toneladas de commodities agrícolas por ano.

Boa parte da produção da região é, atualmente, transportada até os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR), no Sudeste e no Sul do país, a uma distância de mais de 2 mil quilômetros do ponto de origem. Portanto, a ferrovia soma-se a BR-163, que teve seu asfaltamento concluído em 2019, para promover uma “revolução logística” do escoamento de grãos, reduzindo o deslocamento em mais de mil quilômetros e invertendo a bacia de escoamento de sul para norte, processo já em curso a partir da rodovia recém-asfaltada.

Entretanto, a realidade é um pouco distinta da apresentada inicialmente no projeto. O projeto pode gerar enormes impactos na região e tem tido forte resistência de povos indígenas da região, que exigem serem ouvidos como interlocutores, por serem diretamente atingidos pelo projeto. Pelo menos seis territórios indígenas (TI) e 17 Unidades de Conservação (UC) estão na área de influência do projeto, segundo nota técnica do Instituto Kabu (ver [Link]) que representa 16 povos indígenas da região e demanda uma revisão do Plano Básico Ambiental da Ferrogrão e a elaboração de um Plano Básico Indígena.

Em uma reportagem de Leandro Melito (Info Amazonia, 5 de julho de 2024 [Link]), com o Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo e a Joio e o Trigo, foi feita uma análise cartográfica do projeto. O estudo elaborado é uma contraposição ao Estudo do Componente Indígena feito durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, pela ANTT e pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) que considerou uma faixa de 10km de impacto, assim, o novo estudo estabelece uma faixa de impacto de 50 Km, seguindo a orientação para este tipo de empreendimento de acordo com a Portaria Interministerial 60/2015, indicando impacto sobre os povos Kayapó das TIs Baú e Menkragnoti, Panará da TI Panará e Munduruku da TI Sawré Muybu, os povos isolados Pu´rô, Isolados do Iriri Novo e Mengra Mrari, além dos TI Praia do Mangue e Praia do Índio, habitada pelos Munduruku, as únicas consideradas no Estudo de viabilidade inicial.

Se eles não nos consultarem, a gente vai criar uma aldeia na linha do trem, aí quero ver se eles vão passar em cima da gente”, afirmou à reportagem Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu. (Melito, 2023)

Ainda considerando adicionalmente a faixa de impacto da rodovia de 50 km, uma zona de amortecimento de 10km no entorno dos territórios indígenas, a ferrovia incide sobre mais de 7,3 mil km² de terras indígenas e ultrapassa 48 mil km² sobrepostos às UC. Outra crítica feita por vários setores resistentes à implantação da ferrovia é sobre o um aumento significativo da presença de pessoas nas proximidades dos TI, potencialmente exacerbando o desmatamento, a grilagem de terras e os conflitos processos combinados que já vem ocorrendo (Figura 4 e Figura 5). Entretanto, apesar do novo governo do presidente Lula, iniciado em 2023, ter incorporado a Ferrogrão ao PAC, se alteraram as formas de diálogo junto aos povos indígenas atingidos e está em curso o desenvolvimento de um novo Diagnóstico Ambiental (Informação colhida na ata de reunião de 20 de novembro de 2023 no Ministério dos Transportes [Link]).

O traçado projetado para a ferrovia atravessa o Parque Nacional do Jamanxim, anteriormente classificado como uma Unidade de Conservação. Por meio da Medida Provisória nº 758/16, foi realizada a desafetação6 da área pela faixa de domínio da ferrovia, medida que foi aprovada pelo Congresso e sancionada por meio da Lei nº 13.452/2017. Em 2021, em resposta a uma ação (Canal Rural, 20 de março de 2024 [Link]) movida pelo partido político PSOL, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes concedeu uma liminar suspendendo o projeto. A justificativa para a ação baseou-se na alegação de que um trecho da ferrovia atravessava uma unidade de conservação federal, potencialmente causando danos ao meio ambiente, o que, a princípio, não seria viável através de uma medida provisória. Ainda não foi realizada nova audiência sobre o caso.

Neste momento, já existe um enorme impacto ambiental e sobre territórios indígenas ocasionado pelo asfaltamento da rodovia BR 163, iniciado em 2009, com aumento das queimadas e do desmatamento ao longo da rodovia, indicando recordes de conflitos fundiários em Novo Progresso em 2020 (Figura 6), um avanço do desmatamento (Figura 4) e uma intensificação das queimadas (Figura 5). No distrito de Miritituba na cidade de Itaituba, onde se localizam os portos nas margens do rio Tapajós para onde se destinam tanto a BR 163 como a Ferrogrão, está ocorrendo uma grande transformação urbana (Tinoco, 2019). No distrito, além dos portos já instalados após o asfaltamento da BR 163 iniciou-se um novo ciclo de implantação portos privados, gerando impactos nos rios e nos povos indígenas e tradicionais da região.

“O que chama a atenção é a quantidade de projetos de infraestrutura, projetos imensos que não são pensados para os povos tradicionais, não tem lugar para nós nesse conjunto de infraestrutura.” afirmou Kunity Panará, secretário da Associação Iakiô Panará (Melito, 2023)

Além dos diversos conflitos e resistências dos povos indígenas organizados na Kabu, citada acima, o projeto sofreu críticas também de agentes do mercado, que veem uma série de problemas na formulação e viabilidade do projeto, chegando a afirmar que muito possivelmente não haveria interessados na concessão, devido aos enormes passivos sociais e ambientais e os possíveis riscos financeiros, relacionados a atrasos das obras e a competição com outras rotas de escoamento. Em artigo “Ferrogrão: um projeto que não se sustenta” [Link], Cláudio Frischtak, da Inter. B Consultoria Internacional de Negócios, afirma: "A Ferrovia aguarda decisão do STF para poder cruzar a Amazônia, mas é mal concebida e pode trazer prejuízos ao Tesouro Nacional”. Foi destacado, também, por Cláudio que é previsto um aumento na produção de grãos sem considerar os problemas enfrentados atualmente no Estado do Mato Grosso, como o aumento da temperatura, a redução das chuvas e o esgotamento das reservas subterrâneas de água. O mesmo chegou a destacar que é crucial levar em conta o risco climático, pois não se pode presumir que as condições ambientais para a produção de grãos permanecerão as mesmas nos próximos 60 anos da concessão.

Protesto do povo Kayapó em agosto de 2020 na BR-163 exige direito de consulta na concessão da Ferrogrão none Fonte: Fernando Sousa/Instituto Kabu

Outro ponto mencionado é que a Rumo, uma das maiores concessionárias de transporte ferroviário de cargas do país, é contra o projeto, pois o mesmo amplia a concorrência com trilhos já administrados por ela na região Centro Oeste e Sudeste, ameaçando seu poder de monopólio sobre o escoamento de grãos do Centro Oeste, podendo baixar o preço do frete, na consolidação do escoamento pela região Norte. Por outro lado, outros grandes grupos têm interesse no projeto. Além das traders do agro, já mencionadas, existe a Valor da Logística Integrada S.A. (VLI), grande empresa do ramo de concessões de ferrovias e pertencente a multinacional de mineração Vale e ao Fundo Pátria, dono da companhia Hidrovias Brasil.

O governo Lula incluiu, em 2023, o projeto no novo PAC, mesmo com grandes críticas do Ministério dos Povos Indígenas, mas com aprovação do Ministério dos Transportes. O ministro dos transportes Renan Filho vem mobilizando um discurso de sustentabilidade, de redução da emissão de gases do efeito estufa, da redução do frete, do aumento da arrecadação fiscal e da geração de empregos, para criar um consenso em torno do projeto, uma argumentação que visa ampliar o Consenso das Commodities no país somente por seus impactos positivos, omitindo outras dimensões.

A Ferrogrão indica um novo estágio da financeirização da infraestrutura, com planejamento corporativo do território por meio de PMI e emissão de títulos verdes. Qual será o caminho da Ferrogrão, ainda não sabemos, mas a inclusão do mesmo no PAC indica a força dos agentes do neoextrativismo.

Apontamentos finais

A partir do contexto e análises expostas, este estudo buscou compreender a relação entre o avanço do agronegócio e as transformações socioespaciais e econômicas em curso no Brasil. O foco foi a esfera da circulação das commodities, considerando as transformações das formas de provisão de infraestrutura logística, num contexto de privatização, financeirização do setor. De acordo com o que foi apresentado neste artigo, o avanço do consenso das commodities no Brasil ocorreu tanto nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), como no governo de Michel Temer (2016-2018) e da extrema direita de Jair Bolsonaro (2019-2022) e parece continuar no novo governo Lula, iniciado em 2023.

Registramos nos casos analisados o avanço contínuo de formas privadas de gestão da infraestrutura e dos instrumentos financeiros de extração de riquezas ligados a elas. São contratos de concessão, que passaram a incorporar as debêntures como forma de financiamento no mercado financeiro, avançaram com o PMI, como forma de planejamento corporativo do território e por fim se inicia uma fase de títulos verdes relacionados a infraestrutura.

Na concessão da rodovia BR-163, identificou-se uma mudança nos agentes envolvidos. No primeiro trecho concedido à iniciativa privada no governo Lula, temos a participação do arranjo histórico de grandes empreiteiras na execução e gestão de grandes obras. Após a Operação Lava Jato, que impactou fortemente as grandes empreiteiras, houve uma mudança significativa. Já no governo de Jair Bolsonaro, na concessão do segundo trecho da rodovia, identificamos a entrada de novos agentes: a Conasa, grupo criado em 2007 em sociedade com fundos internacionais, e a Zetta Infraestrutura, de propriedade da H&F Holding, ligada ao grupo JBS, numa estratégia de diversificação frente a um novo contexto no setor. Esse movimento reforça a tese de Campos (2019) sobre a desnacionalização e a derrocada das grandes empreiteiras que oligopolizaram o mercado nacional de infraestrutura durante quase 50 anos. Ou seja, passa a se estabelecer uma nova topologia de extração de rendas pelos proprietários dessas concessões, mais globalizada, conforme foi colocado por Torrance (2008): uma nova governança glocal, extraindo recursos localmente e distribuindo globalmente.

No projeto da Ferrogrão, que se estende desde 2014, temos outras manifestações da transformação do setor de infraestrutura. Este é um projeto diretamente proposto pelas multinacionais do setor agrícola, como Louis Dreyfus, Amaggi, Bunge e Cargill, ou seja, um planejamento corporativo do território via PMI. O primeiro estudo de viabilidade omite as Terras Indígenas e Unidades de Conservação existentes na região. Sob o discurso ambiental de redução de emissão de gases do efeito estufa pela diminuição de caminhões, pela redução do deslocamento até o porto de Santos e pelos empregos gerados, o projeto procura mobilizar um consenso do desenvolvimento neoextrativista, o Consenso das Commodities. Nesse sentido, além de um novo planejamento da infraestrutura direto pelo capital, a concessão traz novos agentes ligados ao discurso ambiental, como a Climate Bond Initiative, para dar lastro à retórica e trazer novas camadas à financeirização da infraestrutura, pela emissão de títulos verdes originados na implantação do projeto. Os novos produtos trazem a natureza para as modelagens e para o VPL, fazendo a presentificação da natureza futura. Entretanto, apesar da força política e econômica e da retórica do consenso dos capitais interessados no projeto, os indígenas vêm resistindo e lutando pela sua participação nas discussões do projeto, conseguindo barrar o seu avanço mesmo no contexto do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, onde os impactos foram mascarados e os órgãos de fiscalização aparelhados.

Os impactos já estão sendo sentidos na região a partir do asfaltamento da rodovia BR-163, conforme os mapas apresentados, com intensificação do desmatamento, gerando conflitos e explicitando as dinâmicas do desenvolvimento neoextrativista, de expansão e despossessão de povos originários e tradicionais. O governo Lula parece adotar outra postura em relação à preservação ambiental, tendo diminuído significativamente o desmatamento e avançando com a criação do Ministério dos Povos Indígenas. Contudo, o Consenso das Commodities e os projetos neoextrativistas seguem em marcha e com força política e econômica para continuar. Ainda é difícil prever seus desdobramentos, mas as resistências continuam na busca de construir alternativas a esta via de desenvolvimento destrutiva e predatória da floresta e da diversidade de formas de vida.

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Programa federal que reúne os projetos prioritários para o estabelecimento de parcerias público privadas, importante estrutura de gestão do processo de privatização e financeirização da infraestrutura.

A concessão comum criada em 1995 no inicio de implantação da agenda neoliberal no Brasil é uma forma de gestão privada da infraestrutura, onde o estado concede a infraestrutura por um período e o gestor se remunera na cobrança de tarifas.

Operação da Polícia Federal do Brasil contra crimes de corrupção envolvendo empreiteiras e empresas estatais, que depois foi denunciada na operação Vaza Jato por utilizar métodos abusivos de produção de provas e evidências, tendo parte de suas condenações e multas revertidas.

Instrumento financeiro, criado em 2012, de captação de recursos para projetos de infraestrutura.

O PMI é um instrumento administrativo, criado em 2015, que precede a contratação de serviços e obras e viabiliza o setor privado propor projetos ao poder público (Decreto 8428/2015, Governo Federal).

Desafetar é transformar a destinação do bem público, passando para o domínio privado do Estado ou de outro ente privado.

Gostaria de agradecer aos colegas Jeroen Klink e Laisa Eleonora Stroher que ajudaram enormemente na elaboração do artigo com a revisão atenta e contribuições fundamentais para o seu desenvolvimento.

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Quid16. Revista del Área de Estudios UrbanosISSN: 2250-4060.

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