Riscos no Risco

Espacio Abierto

QUID 16. Revista del Área de Estudios Urbanos.
Núm. 21 (2024)
DOI: 10.62174/quid16.i21_a403

Riscos no Risco

Juventude, narrativa e etnografia no campo das intervenções artísticas urbanas

José Luís Abalos Júnior a;b ORCID
abalosjunior@gmail.com

Leonardo Palhano Cabreira c ORCID
leo.csociais@gmail.com

a Consejo de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), Argentina. ROR
b Escuela de Altos Estudios Sociales de la Universidad Nacional de San Martin (IDAES-UNSAM), Argentina. ROR
c Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. ROR

Resumo

Este artigo visa analisar o tema do risco associado ao de juventudes. Quando abordamos o conceito de risco estamos nos referindo a dois elementos simultaneamente: risco no sentido ameaça ou perigo e risco no sentido de intervenções urbanas marcadas pelo seu rápido tempo de produção. Tendo como foco empírico de nossas etnografias o estudo de jovens que produzem graffiti no sul do Brasil, iniciamos um debate sobre as possíveis mitologias do risco. Após apresentarmos três dimensões mitológicas narradas por interlocutores de nossas pesquisas, dialogamos sobre experiências práticas vivenciadas por nós enquanto etnógrafos urbanos no acompanhamento de jovens artistas de rua. Por fim, trazemos um debate teórico onde buscamos associar criativamente os campos conceituais dos estudos de risco e juventude.

Palavras chave: Graffiti; Intervenção urbana; Risco; Etnografia; Imagem.

Abstract

This article aims to analyze the theme of risk associated with youth. When we approach the concept of risk, we are referring to two elements simultaneously: risk in the sense of threat or danger and risk in the sense of urban interventions marked by their rapid production time. With the empirical focus of our ethnographies on the study of young people who produce graffiti in southern Brazil, we started a debate about the possible risk mythologies. After presenting three mythological dimensions narrated by interlocutors of our research, we discussed practical experiences lived by us as urban ethnographers in accompanying young street artists. Finally, we bring a theoretical debate where we seek to creatively associate the conceptual fields of risk and youth studies.

Keywords: Graffiti; Urban intervention; Risk; Ethnography; Image.

Recibido: 2022/3/29; Aceptado: 2022/9/13.

Introdução

Ninguém pode envolver-se num diálogo sem correr sérios riscos. Ele é sempre uma transação arriscada (Appadurai, 2009, p. 23).

Homófonas são palavras que podem ter uma escrita igual, sonoridades iguais, mas sentidos diferentes. O termo “risco” faz parte deste conjunto. Risco, no seu sentido êmico, é aqui entendido como traço, rabisco, ou, genericamente, intervenção feita à base de tinta (com caneta, spray ou pincel) nos muros da cidade. Por outro lado, risco pode ser entendido como um sinônimo de perigo ou ameaça. Nesse sentido, “risco” é visto aqui como uma categoria sociológica. A ideia central deste trabalho é refletir sobre a diversidade de associações históricas entre estes dois sentidos

O universo das intervenções urbanas se apresenta como mote privilegiado para a reflexão de uma gama dos mais diversos conceitos e categorias na área das Ciências Sociais, e com a noção de “risco” isso não é diferente. Tradicionalmente alcunhados de uma suposta subversividade em seus saberes-fazeres, artistas e intervencionistas da urbe1 tencionam suas condições sociais num universo marcado pela repressão, o que privilegia suas ações pela cidade serem realizadas na penumbra da noite, à margem do olhar estatal que o repreende. Neste artigo, nosso objetivo central é refletir como jovens grafiteiros se relacionam com a ideia de múltipla de risco nas suas realizações urbanas cotidianas.

Esse trabalho se baseia em duas metodologias de cunho qualitativo principais: a pesquisa documental vinculada a revisão bibliográfica a observação participante caracterizada como etnografia. Em um primeiro momento trazermos questões de contextualização histórica em três experiências espaço-temporais que, em maior ou medida, influenciaram o aparecimento de subculturas juvenis (Hebdige, 2004) como a do graffiti em diversos contextos culturais. Esses dados são produto de uma revisão teórica em livros, artigos e produção audiovisuais importantes no campo de estudos sobre o graffiti contemporâneo (Campos, 2010; Chalfant e Prigoff, 1987; Dickinson, 2008). Já em uma segunda parte do texto expomos experiências etnográficas que tivemos no acompanhamento de jovens grafiteiros na cidade de Porto Alegre, no extremo sul do Brasil. A observação direta foi realizada em contextos arriscados característicos da produção ilegal dessa comunicação visual na urbe. O que trazemos nesse texto são reflexões sobre os diários de campo e as imagens que, no decorrer dessa experiência de pesquisa, se tornaram algo significativo.

Primeiramente trazemos uma revisão teórica sobre o tema dos riscos nas ciências sociais e, embasados em Guivant (1998), abordamos uma possibilidade de divisões nessa área de estudo. Depois contextualizamos três contextos sociais e políticos que, segundo nossos interlocutores, os inspiram na prática de invenção na cidade. Posteriormente descrevemos questões etnográficas nas quais o risco é associado às dimensões de performatividade, identidade urbana e estilo de vida. Concluímos este trabalho apontando que o risco é compreendido e, também, almejado na cidade, e muitas vezes perpassa em diversas trajetórias como um estilo de vida urbano.

O Risco nas Ciências Sociais

Quando falamos de risco enquanto uma temática interdisciplinar que atravessa várias áreas de pesquisa partimos de autores base como Anthony Giddens (1989), Ulrich Beck (1992) e Mary Douglas (1994). Dentro de escolas de pensamento distintas sobre o risco, podemos dividir os estudos em algumas linhas de pensamento, como sugere Guilvant (1998): uma primeira dimensão vinculada a análise técnica, a análise cultural do risco e sociedade de risco presente em uma modernidade tardia.

Na análise técnica se prevê uma estimação e um controle dos riscos. Aqui o risco é entendido como um “evento adverso com determinadas de probabilidades que podem ser estimadas” (Guivant, 1998, p. 2). Articula-se, também, a ideia de “risco aceitável” que contempla elementos que podem ser controlados. O que percebemos nesse cenário é uma administração dos riscos e a produção de uma racionalidade que busca gestionar, através de quadros técnicos, todos imponderáveis presentes no risco. O risco é entendido como uma narrativa do estado através de políticas públicas que o precisam prever. Portanto, há “profissionalização do risco” na qual uma série de pessoas se especializam em uma análise técnica que é capaz de analisar riscos e propor soluções.

Já uma percepção cultural do risco entende que o controle e a previsibilidade dos riscos não são fatores essenciais. Aqui é importante perceber –inclusive etnograficamente– que os riscos globais não impactam de mesma forma localidades cultuais. Nesse sentido, a cultura não faz uma leitura que análise técnica faria, fugindo na “objetividade do risco”. A foco principal da análise cultural está nas hierarquias de atenção ao risco em um campo cultural que pode ser diverso e tem suas especificidades a serem analisadas.

Por fim, a sociedade de risco (Beck, 1992) é um conceito profundamente difundido nas ciências sociais. Idealizado pelo sociólogo alemão Urilch Beck é um conceito usado para descrever a maneira pela qual a sociedade moderna se organiza em resposta ao risco. Essa “racionalidade do risco” não é estática e pode ser transformada tendo em vista contextos espaço-temporais. A divisão entre peritos e leigos, base da modernidade, pode ser questionada pela capacidade de discernimento que sujeitos, que não passaram por um processo de formação institucionalizado para analisar riscos, têm de realizar esse tipo de análise.

Trazendo o tema dos riscos para o nosso universo de pesquisa pode-se dizer que o campo das intervenções urbanas ilegais, não comissionadas e efêmeras, como demonstra a tradição americana que veremos, é um campo de investigação eminentemente arriscado. Ricardo Campos (2009), em seminal artigo intitulado Entre as luzes e as sombras da cidade: visibilidade e invisibilidade no graffiti, aborda que “aqueles que se dedicam ao graffiti trabalham na obscuridade, numa labuta persistente que serve de legitimação à pertença a este universo” (2009, p. 147). Assim, a noção de risco, encarada de forma diferente em muitos conjuntos de práticas na cidade, aqui é visto como algo necessário para se estar em coletivo, e, curiosamente, prazeroso. O risco de ser capturado pelos órgãos de controle, de cair de uma marquise ou sacada e se ferir gravemente, de ser agredido. Durante esta ação apropriadora, que deixa marcas na urbe, os sujeitos se reconhecem enquanto praticantes, enquanto cultura urbana. Um campo cultural que tem na ideia de risco uma chave de entendimento.

É a partir dessa peculiar ambivalência, para utilizar uma expressão de Le Breton (2019), que procuramos refletir sobre a noção de risco no campo das artes e intervenções urbanas. Ou, parafraseando Cioccari (2012), que possibilidades de reflexão esta categoria suscita quando estimada a nível do contexto etnográfico? Para a autora a etnografia é uma ótima ferramenta para a análise cultural dos riscos por ser uma forma de coleta de dados que compreende as ambiguidades dos riscos. Desta forma, inicialmente partimos para uma descrição histórica de contextos sociais e políticos que servem de inspiração para muitos jovens grafiteiros nos quais tivemos contato em nossos trabalhos de campo.

Eu estive aqui: experiências históricas do risco com juventudes e intervenções urbanas

Como primeira experiência mitológica do risco não poderíamos deixar de citar um tempo, digamos, pré-urbano, no qual as cavernas ainda faziam parte dos nosso modo vida no mundo, e, como habitat, elas foram os muros de um tempo longínquo, mas recorrentemente citado como fonte de inspiração por muitos artistas urbanos. Uma segunda experiência histórica diz respeito a uma Europa em convulsão e as reminiscências de um não tão distante Maio de 68. Por fim, como experiência mitológica global, rearticulada de inúmeras formas locais, aparece o Hip Hop e o Graffiti como uma de suas dimensões. Não cremos que essas três experiências dêem conta de todo um arsenal mitológico muito mais profundo e enraizado em culturais locais. Contudo, como diria Levi-Strauss (1987), os “mitos são bons pra se pensar” e aqui são bons para pensar no entendimento de como determinados modelos de expressão urbanas continuam vivos, séculos ou décadas após seus surgimentos.

A tradição que vem da pré-história

A tendência para escrever em paredes públicas data da antiga Grécia. São hoje muito conhecidos os graffitis na Ágora de Atenas datados do século VI A.C. ou do Vale dos Reis, no Egito (Riout et al., 1990). Os primeiros interessados pelo estudo do graffiti foram os especialistas em epigrafia antiga. A própria palavra “graffiti” fez sucesso no “vocabulário arqueológico internacional” (Leandri, 1982, p. 5). Primeiramente estas inscrições nas paredes pré-históricas não foram reconhecidas pelos primeiros pensadores como um objeto de pesquisa por uma aversão a cultura popular. É só com a nova historiografia que elas aparecem como um elemento interessante a ser pesquisado. A aparição do “fenômeno espontâneo da escritura mural exposta”, como bem foi explicado por Armando Petrucci (1986) em La Scrittura. Ideologia e Representazione, tem sido interpretada pelas instâncias onipotentes como “uma ameaça e uma transgressão” (Petrucci, 1986, p. 149).

Se internalizou tão profundamente a proibição moderna contra o graffiti doméstico que os historiadores antigos leram sua sobrevivência como uma evidência de que o edifício ou a sala em questão tinha uma função pública. Como uma história que remonta vários milhares de anos, a escrita com nas paredes nos ensina sobre nossos próprios hábitos. A simples descrição "eu estive aqui" pode anunciar uma conexão pessoal com um lugar ou documentar uma situação emocionalmente importante, mas é sempre uma forma de auto exibição. Neste sentido a prática de “marcar uma parede” parece estar profundamente enraizada na história da nossa sociedade, de forma que é difícil entrar uma gênese desse processo.

Muitos trabalhos vão na direção de quando e como aconteceram esse tipo de manifestações sociais. Contemporaneamente a arqueóloga alemã Polly Lohmann é uma das pesquisadoras que buscam entender tais questões através de sua tese, que se transformou em um livro intitulado Graffiti como forma de interação: inscrições gravadas nas casas de Pompéia. Segundo a autora, a escrita específica da frase “eu estive aqui”, dentre tantos outros elementos possíveis, se destaca.

Escavações no antigo Egito, Grécia e Roma revelaram um rico corpo de inscrições arranhadas nos pisos e paredes de edifícios públicos e privados e incisadas em objetos do cotidiano, como vasos de cerâmica. Mas uma coisa permanece constante ao longo do tempo e do local: a maioria dessas inscrições consiste em nomes, provavelmente os dos escritores e frequentemente combinados com a frase “...estava aqui” (Lohmann, 2018, p. 5).

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Figura 1. Figuras de animais e eróticas nas paredes de Pompéia.
Fonte: Wikimedia Commons.

A vinculação com esse histórico de intervenção em superfícies públicas aparece de muitas formas nas narrativas de jovens grafiteiros que entrevistamos em nossas pesquisas. Como nos disse um interlocutor, grafiteiro porto-alegrense, há uma vinculação “natural” do seu trabalho na cidade com aqueles que rabiscavam paredes no início da humanidade. Para o artista há uma conexão que perpassa o tempo e o espaço, pois a necessidade de ocupar espaços vazios com rabiscos e arte faz parte da essência do ser humano.

Eu acho que o que eu faço como artista urbano se fazia desde o início da humanidade. O homem sempre rabiscou e pintou paredes como forma de comunicar e quando eu faço sinto uma relação natural com isso. Acho que está na natureza do ser humano mesmo... Hoje eu não consigo olhar para uma parede cinza ou branca sem imaginar alguma coisa pra ela. Acho que na época das cavernas era assim também. As pessoas sentem a necessidade de ocupar um espaço visual vazio e isso é humano.

A tradição que vem do Maio de 68

Dentro de um contexto a europeu, que tem sua historicidade marcada por ser berço de tantas nações, super potências globais que colonizaram o continente africano e americano, encontramos o epicentro do surgimento de uma tradição importante para as intervenções urbanas. Nesta conjuntura de efervescência histórica, criativa, política e simbólica o Maio de 68 poderia ter nascido de diversas formas. São muitos os escritos que falam sobre o estopim do movimento. Aqui seguimos as considerações históricas do jornalista Zuenir Ventura em seu livro 1968: o Ano Que não Terminou, de 1988. Inicialmente o movimento era essencialmente estudantil na Universidade Paris Nanterre e tratava-se de uma greve de estudantes moradores de casa de estudantes que pediam, entre outras reivindicações, que os alojamentos masculinos e femininos não fossem separados. Depois de uma grande repercussão movimento estudantil entre outras universidades parisienses o movimento cresce e toma conta da cidade exigindo do então primeiro ministro, o ex-oficial de guerra Charles de Gaulle, ações que iam em direção aos objetivos da massa de jovens que ocupava a ruas.

O modelo francês responde basicamente a um tipo de graffiti onde o componente verbal é majoritário e que tem seus expoentes mais emblemático, como já foi afirmado, as ruas de Paris na ocasião da revolta de 1968. Esta modalidade gráfica está relacionada a uma elaboração verbal que não está muito preocupada com a elaboração plástica do texto, concentrando-se assim basicamente no seu conteúdo. Esse era o modelo de graffiti mais habitual na Europa até a chegada da moda vinda do outro lado do atlântico.

Por ter mais evidente a dimensão verbal maior que a icônica, parece claro que, inicialmente, o campo da arte francês se demonstrou mais fechado do que o norte-americano relativamente a promoção do graffiti e de seus espaços autorizados. Em 1968, o que acontecia em Nova Iorque ainda não estava globalizado, digamos assim, pois os grandes filmes e revistas, que chegaram ao mundo todo ainda não estavam nas telas, nem nas bancas.

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Figura 2. Fotografia da inscrição clássica presente nos muros de Paris durante o Maio de 68 “É proibido proibir”.

Dito isso, podemos supor, com os devidos cuidados, que essa tradição parisiense de intervenção não era ligada a uma “experiência de rua”, e sim a um resultado de indignação coletiva que teve as paredes como um dos focos de ação. Contudo essa dita modalidade de experiência de rua, tendo em consideração o que De Certeau (1994) chamou de “práticas do espaço”, pode ser interpretada de muitas formas conforme seu contexto social. Importante é perceber o quanto o Maio de 68 inspirou, inspira e continua inspirando coletivos de grafiteiros e grafiteiras.

Alguns anos mais tarde o artista Blek Le Rat, uma das grandes referências das intervenções urbanas parisienses, inicia um processo de mescla os estilos norte-americano e francês. Blek le Rat, nome artístico de Xavier Prou, nasceu nos subúrbios de Paris e foi muito ativo no Maio de 68 enquanto um estudante de artes e arquitetura. Em 1971, faz uma viagem a Nova Iorque e se depara com a uma paisagem urbana repleta de intervenções pelas quais é muito influenciado. Decidido em adaptar o modelo novaiorquino em Paris, Le Rat, por volta de 1981, começa a espalhar pinturas de ratos pelos muros através da ainda nova técnica do stencil (Le Rat é considerado por muitos o “pai do stencil”). Para o artista francês os ratos são os únicos animais “selvagens e livres” assim como a arte urbana.

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Figura 3. Os ratos de Blel Le Rat em Stencil. O artistas urbano foi um dos primeiros a trazer questões mais imagéticas/pictóricas a uma cena de expressão urbana que se baseia no conteúdo de expressões urbanas em palavras.

A tradição americana

Uma organização política, econômica e sociocultural que coloque o Estado como agente da promoção social e organizador da economia é o que vemos nos Estados Unidos após a segunda guerra. O advento do “Welfare State”, representação moderna da fase de ouro do capitalismo pós-guerra, fez emergir cidades desenvolvidas nas quais as condições de trabalho se deram de forma mais adiantada2. Os anos setenta marcam a crise deste modelo e os acontecimentos que vieram a desembocar na nossa reflexão sobre intervenções urbanas.

Esse processo de falência por parte da administração do estado americano se expressa materialmente na cidade de Nova Iorque onde o estado de calamidade pública, após sucessivas más administrações municipais e estaduais, é decretado. São da década de setenta as imagens do caos novaiorquino. A iconografia de uma cidade suja, queimada, sem nenhuma ação de um Estado de bem estar social arruinado, é a mesma iconografia que germina um modo de intervenção urbana que seria globalizado. Dizer que o graffiti americano veio do pó das ruínas não é uma mera alegoria narrativa, é um fato incondicional da história dos muros do mundo. Assim podemos perceber o quanto histórias de “writers” são histórias de uma juventude que nasce na falta de bens e serviços básicos para uma sobrevivência enquanto sujeitos humanos.

O Hip Hop é originado nesse contexto onde crise e criatividade andam de mãos dadas. Nessa geografia social novaiorquina, Manhattan é um centro econômico desejado, enquanto as regiões do Bronx, Queens e Brooklyn são espacialidades negras e latinas, pobres, e epicentros culturais de uma cultura urbana que viria a globalizar-se. É este movimento que nasce em Nova Iorque, nas décadas de sessenta e setenta, que chega nas “entranhas” de uma cultura de intervenção urbana a níveis inimagináveis. Interessante perceber como a escassez de recursos financeiros e sociais gera aqui um “upgrade” a níveis culturais e nos ajuda a entender o que deu tanta força ao movimento de inscrições em trens e muros. Se os writers novaiorquinos, seres mitologizados na ação imaginante e criativa de quem intervém nas paredes hoje, inauguraram um “novo” modelo de ser e estar na cidade, é por que esse modelo tem gênese numa ideia e numa vivência de crise. Essas questões já acompanharam muitos pensadores e o que cabe aqui dizer é algo já muito falado: o graffiti novaiorquino não nasce sozinho, ele é um “filho” de um campo cultural reconhecido como Hip Hop.

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Figura 4. Fotografia clássica do livro “Subway Art”
Fonte: Livro Subway Art (Coper & Chalfant, 1984).

Também cabe dizer que no contexto do nascimento do graffiti vinculado ao Hip Hop nos Estados Unidos, no final de década de 60, a prática era baseada numa teia social complexa de códigos, representações, regras e prática sociais específicas (Castleman, 1987; Coper e Chalfant, 1984; Dickinson, 2008; Stewart, 1989). Os writers de graffiti podiam se organizar em dois grupos: os “marcadores territoriais” (territorial markers) e os “solitários” (loners) (Stewart, 1989, p. 13). Os primeiros faziam graffiti no contexto do seu grupo, muitas vezes ligado a atividades de natureza ilegal. Os segundos faziam do graffiti a sua forma de afirmação identitária individual. Mas são Chalfant e Prigoff (1987) que buscam responder mais objetivamente o que é um Writer. Segundo os autores,

É um escritor (writer), que ocasionalmente trabalha em equipe (crew), com o objetivo de deixar ver (gettin’up) sua assinatura (tag) em um espaço (peça) que preferivelmente preenche toda a superfície de um vagão de trem de cima a baixo (top to bottom), caso isso não seja possível, o escritor urbano se concentrará em desenhar sua assinatura (throw-up) de uma maneira mais estilizada para deixar constância de que esteve ali e esse agora é seu terreno” (Chalfant e Prigoff, 1987, p. 12).

Segundo Ricardo Campos “a criatividade cultural desses jovens vive da apropriação das substâncias visuais do cotidiano” (2010, p. 96). A questão da visualidade é tão importante que uma das primeiras obras acadêmicas sobre o graffiti em Nova Iorque, junto com Chalfant e Cooper (1984), é a de Castleman, de 1982, denominada “Geeting Up” na qual o autor fala da visibilidade na cidade como fator incondicional de motivação nas práticas dos writers. O “To Get Up”, que é uma espécie de conceito êmico dentro das comunidades dos grafiteiros, se tornou um mote na busca de destaque e visibilidade. Merece destaque toda a produção fotográfica da lendária Martha Cooper. Ela foi uma das primeiras fotógrafas mulheres a documentar imagens de trens e ruas de Nova Iorque. Através de suas imagens organizadas no memorável livro “Subway Art”, o mundo conheceu todo um universo desconhecido do graffiti americano. Há quem diga que o graffiti não seria o que é hoje sem as fotos de Martha.

Pompéia. Paris. Nova Iorque. Seja qual for o tempo, seja qual for espaço, podemos chegar em algumas conclusões que fazem sentido nestas três experiências relatadas. Estamos falando de situações que o tempo (re)significou, tornou-as referências mitológicas. Mais conceitualmente, estamos falando de “acontecimentos” (Delleuze e Salinas Fortes, 1974; Veyne, 1983) de grande convulsão social onde o meio urbano estava totalmente em erupção, sem nenhuma autoridade pública capaz de controlar .

Tendo em vista essa contextualização histórica e mitológica que inspira muitos jovens artistas urbanos, nos seus cenários de crise e risco na cidade, partimos para uma nova etapa na qual buscamos associar o risco nas intervenções urbanas às dimensões do corpo. Além do eixo histórico, buscamos com isto trazer narrativas e espaços de intervenção para o debate.

O risco enquanto estilo de vida na cidade: etnografias com jovens grafiteiros

NSM, bastava tempo e tinta para a escrita dessas três letras e o sentimento de dever cumprido se instaurasse na calada da noite. Quando acompanhei Guilherme, em 2017, senti muito medo. Mas o que era pra mim um entrave, para ele era um impulso. Saímos da Rua João Alfredo e fomos a uma paralela para que ele me mostrasse como pixava, seu estilo de pixação. Ao dobrarmos a esquina o olhar de NSM mudou… identificou onde queria estar com suas letras. Olhou atentamente para o breu de uma fachada não iluminada pelos postes e me avisou com um olhar corajoso: “vamos ali”. A intervenção durou cerca de um minuto, o bastante para ouvirmos passos em nossa direção. O olhar mudou, agora representava a necessidade de não mais estar ali. Corremos e voltamos ao centro da rua João Alfredo. Um olhar curioso, um olhar corajoso, um olhar medroso, um olhar satisfeito. São vários os olhares demonstrados por um corpo que intervém na cidade, Guilherme me compartilhou os seus (Diário de Campo de Autor I, Porto Alegre, Julho de 2017).

Não há produção de intervenções ilegais na cidade sem risco. Independente de como o chamamos (o risco), ele é parte constituinte de quem se expressa na cidade e produz “riscos”. Ednalva Neves e Leila Jeolás (2012), buscando refletir sobre as aproximações e dificuldades sobre a noção de risco nas ciências sociais, destacaram que o termo risco permite uma comunicabilidade sobre o “arriscado”, “arriscoso”, “perigoso”, “inseguro”, enfim, os imponderáveis da vida cotidiana malinowskiano, o que garantiria a interlocução mesmo em cenários de dissensão semântica e cultural. (Ibid., p. 13-14). Portanto, estamos a falar de um campo de pesquisa que se associa determinantemente ao risco como prática e identidade urbana.

A perspectiva levantada por estas autoras é também encabeçada por David Le Breton (2019). Para este autor, a questão do risco está, nos dias de hoje, no âmago de nossas sociedades e da existência individual dos sujeitos. Tomando o risco como sinônimo de ameaça, muitas vezes esquecemos que ele, em si, é também a fonte da exaltação, da intensidade da existência. Logo, Le Breton nos ajuda a pensar o risco muito além de seus sinônimos clássicos que, de certa forma, invisibilizam questões de estilo de vida associado ao “arriscar-se”.

Na vida cotidiana, e além, nas atividades tecnológicas ou científicas, econômicas ou políticas, o risco está associado mais ao perigo. Contudo, se for livremente escolhido, pelo contrário, é percebido como motivo de prosperidade, uma oportunidade de confrontar-se a uma situação inédita, um recurso para redefinir a existência, para testar as capacidades pessoais, elevar a autoestima ou obter o reconhecimento dos outros. O risco adotado deliberadamente é uma escola de caráter. [...] Na dor, no sofrimento, no tormento, na incerteza do amanhã, o indivíduo experimenta sua existência com uma intensidade absurda. Jogar com risco dá a sensação de fugir de sua antiga condição, de retornar ao mundo plenamente (Le Breton, 2019, pp. 43–44).

Interessante, para nós, é a possibilidade de pensarmos nessas questões justamente a partir de nossas experiências etnográficas em Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil), remontando narrativas biográficas a partir do trabalho de recordar narrado por jovens grafiteiros e interventores da urbe, interlocutores centrais de nossas pesquisas. Importante mencionar também que, como fundo inspirador de nossas pesquisas, encontra-se a perspectiva teórico-conceitual da Etnografia da Duração (Eckert e da Rocha, 2013), de modo em que consideramos a experiências urbanas de nossos interlocutores enquanto ato de fruição estética através dos jogos da memória coletiva. Nessa medida, gostaríamos de elencar algumas destas experiências a nós confidenciadas.

Primeiro, a partir de uma experiência etnográfica que o Autor II teve em sua pesquisa sobre arte urbana na Zona Sul de Porto Alegre, uma breve discussão: dois jovens grafiteiros, num momento de socialização durante um mutirão de graffiti numa escola do bairro Restinga, lembraram de quando foram interceptados durante um vandal3 na rua, e intimados a pichar o nome de uma facção pela cidade. Relembraram com bom humor o acontecido, mas destacaram que “ficaram cagados” na hora, porque, segundo ele, “os pinta tavam armado até os dente”. Essa historieta desencadeou relatos de outros jovens rapazes e suas experiências parecidas durante suas pinturas nas ruas, de momentos de tensão, relatando que já chegaram a, inclusive, com sua mesma grafia, pichar nomes de facções distintas e rivais em locais diferentes da cidade, o que os colocou numa situação bastante delicada de risco e experimentação. Remontando a discussão sugerida por Le Breton (2019, pp. 43–45), notamos que, aqui, o risco é experienciado em sua faceta mais “óbvia”, quer seja, aquela que diz respeito ao medo - de encarar o risco enquanto perigo de morte.

Por outro lado, outra faceta do risco pouco referendada diz respeito ao momento em que este é adotado deliberadamente, como uma escolha de caráter - ou, para ir um pouco além, uma intensidade da própria existência, que permitiria aos atores uma desconexão entre as continuidades de suas trajetórias - portanto, descontinuidades. Sobre este ponto destacamos uma narrativa biográfica de Rikardo Dias, atualmente professor, artista visual e grafiteiro de Porto Alegre. Remontando sua trajetória no fazer artístico urbano, fazendo um balanço de suas primeiras intervenções na urbe, ele relata: ” [fazer graffiti] é um risco que vale a pena. Eu não me vejo fazendo outra coisa, tenho que estar na rua, tenho que botar meu desenho na parede. É até engraçado. Eu nem sei explicar, só sei que preciso”. Nesse caso em específico, compreendemos uma outra faceta do risco: aquele em que a tomada do risco na vida cotidiana é, também, uma tentativa de (re)definir a existência. Le Breton (2019, p. 47) diria que “todo risco assumido coloca a pessoa à mercê de uma palavra, um olhar, um julgamento incomplacente de outros, até mesmo de sua inveja ou rancor”. Assim, de mesmo modo esta incompletude é propícia ao que o autor refere como encantamento do instante, “à descoberta de si mesmo e dos outros”. É nessa díade que buscamos considerar uma chave de entendimento ao graffiti, vinculado à noção de risco: compreender como os atores desta prática, aqui, especificamente, os jovens grafiteiros e interventores urbanos com quem nos realizamos pesquisa, se relacionam com o risco em suas realizações citadinas e, para além disso, sugerimos, dependem dele - o risco é combustível.

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Figura 5. Rikardo coloca retoques finais em seu graffiti na penumbra da noite. Porto Alegre, 2018.
Fonte: Acervo Autores.

Retomemos aqui brevemente o trabalho de Ricardo Campos. A partir de uma reflexão sobre a prática graffiti urbano com camadas juvenis, e considerando este à luz de discussões sobre processos de construção identitária em sociedades complexas, este pensador português (2009, p. 147) remete a subversividade no campo das intervenções artísticas urbanas, considerando que o espaço de exímia transgressão nesta prática é, também, um espaço de ordem e integração. Os atores envolvidos nestas práticas arriscam-se e trabalham numa labuta persistente que serve de legitimação à pertença ao universo em que estes praticantes se inserem e pertencem. É nessa medida que interpretamos que, ao se apropriarem da cidade, dos espaços, lugares, territórios, por meio da visualidade de sua prática de cunho estético-artístico (mas também identitário, político, enfim), estes sujeitos buscam na excitação do risco de uma prática subversiva um modo de reconhecimento - um modo de construir coletivamente suas identidades.

Um segundo exemplo a ser aqui expressado é o da pesquisa de Autor I, junto artistas urbanos da cidade de Porto Alegre. Dentre os diversos acompanhamentos que o autor realizou durante o período de doutorado destaca-se o realizado junto ao artista urbano Marcus Gorga, que produz “macacos urbanos” em forma de graffiti e adesivo, e os “espalha” pela cidade. Ao realizar uma etnografia que dê conta das dinâmicas cotidianas de quem intervêm na cidade percebe-se o quanto o risco além de qualquer significado associado ao medo, diz respeito às questões identitárias.

Gorga, ao caminhar olha para os lados, observa buracos vazios nas superfícies. As placas de trânsito, que possuem mais de dois metros de altura, parecem ser um ideal de alcance. Lá já estão muitos outros adesivos colados por sujeitos que talvez o artista conheça. Após visualizar o alvo prepara-se o adesivo. Há uma capacidade em destacar o papel com cola de seu papel base. Depois disso, há o grande momento da intervenção. Parece não haver mais espaços possíveis entre os stickers presentes nas costas da placa de trânsito desejada. O artista, mesmo que seja alto, é obrigado a levantar a ponta dos pés e dar um pequeno salto para atingir sua finalidade. Com o adesivo em mãos o artista necessita de força no momento da colagem, certificando-se que sua arte não caia e desapareça tão cedo. Após o ato ele sorri ao ver uma agradável composição de pequenos adesivos na qual o seu é um novo integrante. Novas placas e muros virão na próxima esquina. Ele nos conta:

Eu sempre intervi na cidade e eu gosto de fazer isto, principalmente, pela adrenalina que só essa prática me dá. Eu sempre me arrisquei porque é meu estilo e acho que vale a pena sentir isto. Quem começa na arte de rua sente isso mais forte. Com um tempo a gente vai criando consciência, tendo mais responsabilidades, mas o gosto pelo medo de ser pego, medo de cair, medo de me atropelarem, continua. Pode ser é uma coisa difícil de entender, mas é assim que me sinto quando pinto na rua.

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Figura 6. O artista urbano no momento da intervenção ilegal. Porto Alegre, 2018.
Fonte: Acervo Autores.

Nos parece que o risco faz parte de todo este processo detalhado de intervenção. Haveria o artista de vencê-lo e isso gera um sentimento de satisfação em quem pratica a cidade dessa forma. O risco pode ser entendido aqui como uma espécie de “divertimento perigoso”, como relatou o próprio artista. Isso é especialmente instigante quando refletimos a partir de um recorte etário em nossas etnografias. Discutimos isso na próxima seção.

Risco, culturas juvenis e subculturas: aproximações teóricas

Aqui podemos associar a ideia de risco a algo que vai um pouco além do campo das intervenções urbanas e diz respeito às culturas juvenis. Segundo Carles Feixa (2012) em “De Jóvenes, Bandas y Tribus: Antropología de la Juventud” o conceito de cultura juvenil é muito amplo e multifacetado, pois (re) conecta-se com muitos outros como globalização, apropriação cultural, etc. Segundo o autor espanhol

Em um sentido amplo as culturas juvenis se referem a maneira que as expressões sociais dos jovens são expressadas coletivamente mediante a construção de estilos de vida distintivos, localizados fundamentalmente no tempo livre e em espaços intersticiais da vida institucional (Feixa, 2012, p. 85).

Portanto, podemos perceber que uma das possíveis conexões entre risco e cultura juvenis está no campo das necessidades de distinção. Se distinguir-se implica em arriscar-se estes verbos caminham de mãos dadas quando falamos em culturas juvenis. Risco, juventude e cultura se conectam criativamente dependendo dos contextos em que focamos nossa análise e cabe a quem pesquisa um olhar atento a estas articulações conceituais, que também se manifestam material e urbanisticamente. No caso das intervenções artísticas urbanas, nosso interesse empírico, há uma ideia que acompanha todas as mencionadas: transgressão.

Interessante perceber como o conceito de transgressão sugere uma concepção de natureza essencialmente espacial, na medida que invoca ideias de terreno e fronteira que, de alguma forma, a partir de determinados atos, são transpassados. Assim, ao contrário da ideia de desvio (Becker, 2008), que é eminentemente sociológica, a transgressão acarretaria um movimento deliberado de ruptura e passagem para lá de determinados limiares. O graffiti é, assim, para todos os efeitos, uma atividade e uma expressão deslocada, fora do lugar, na cidade regulada e disciplinada. Neste sentido pensar o graffiti através da ideia de “comportamento desviante”, primeiramente formada por de Howard Becker (Ibidem) e posteriormente fomentada por Gilberto Velho (1985), nos leva a pensar no que há de “espacial” neste conceito e nas culturas juvenis que o praticam, ou em que medida a ideia de transgressão deixa esta espacialidade mais explícita, além de fazer parte um vocábulo êmico dos praticantes do graffiti.

Dito isso, há uma distinção entre falar de culturas juvenis (Feixa, 2012) e subcultura, que é um dos conceitos centrais do clássico “Subcultura: o significado do estilo” de Dick Hebdige (2004). Para o sociólogo britânico, o termo subcultura se refere a uma direta contraposição de núcleos de sociabilidades formados por jovens frente a alguma dimensão do social. Assim, ao falarmos de subcultura, estamos falando de uma ideia muito mais “conflitiva” que culturas juvenis. No nosso caso de pesquisa, isso se evidencia no sentido que a uma exposição das tensões latentes entre uma cultura dominante e uma subordinada. Para Hebdige (que não fala especialmente do graffiti), os signos destas subculturas são interpretados pelos mais conservadores como uma “identidade proibida” e acabam funcionando como fonte de valor para seus pares (Hebdige, 2004, p. 2). O estilo, dentro das subculturas, é pleno de significado e, por isso, se torna uma possibilidade de resistência, contrariando a ideia de consenso e uniformidade segundo a qual suas mutações vão “contra a natureza”, interrompendo o processo de “normatização” (Hebdige, 2004, pp. 18–19).

Ricardo Campos (2009) é um autor que nos ajuda a compreender o cenário elencado. Este pensador lisboeta busca refletir sobre a condição social de jovens grafiteiros com quem realizou pesquisa etnográfica, atores que vivem simultaneamente entre dois universos sociais e culturais, e que, em sua percepção, constroem intrincadas estratégias de gestão de sua identidade e do seu cotidiano citadino. Para Campos, (2009, p. 145), a prática do graffiti representa, a estes jovens, justamente um horizonte de ruptura e transgressão, um território de rejeição da lei e das normas hegemônicas onde se experimentam o risco e o desvio, a excitação e as sanções das mais diversas ordens.

Considerando a perspectiva levantada por Campos e indo de encontro com as propostas de Feixa (2012) e Hebdige (Hebdige, 2004), compreende-se que é o fato destes atores arriscarem-se na cidade, demarcando a urbe com a força criativa de suas intervenções artísticas, que as idéias de culturas juvenis e subcultura se fundamentam em nossa discussão. Retomemos aqui nossas experiências etnográficas em Porto Alegre/RS. Quando Rikardo Dias fala da necessidade de estar sempre na rua, pintando, se arriscando, intervindo, mesmo “sem saber explicar”, compreendemos em sua fala a possibilidade da resistência em seus atos, que se fundamenta no reconhecimento de seus parceiros artistas urbanos, e que contraria a ideia de consenso e uniformidade. Quando Marcus Gorga fala de sua busca pela “adrenalina” de intervir na cidade, de que o risco e o medo de ser pego, de ser atropelado, é até algo almejado em sua conduta, que compartilha entre seus pares, compreendemos que é na experimentação do risco e do desvio que esses jovens buscam uma maneira de exacerbar a ruptura com as normas hegemônicas e, finalmente, a transgressão.

Conclusão

Neste trabalho buscamos apresentar o risco no campo das intervenções artísticas urbanas. Primeiramente apontamos nossa tradição de pesquisa em antropologia urbana e visual através da formação no núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL/PPGAS/UFRGS) e no Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/PPGAS/UFRGS). Foi no espaço deste último que participamos da oficina “Atelier de Crise e Risco”, coordenada por Guillermo Gomez, que foi berço da inspiração para escrever esse texto.

Propomos uma divisão lúdica para este trabalho apresentando a historicidade do risco nesse campo, num primeiro momento, e depois adentrando questões etnográficas por nós vivenciadas. No que se refere à primeira parte, é interessante perceber como momentos da história global nos quais intervenções urbanas foram presentes se tornaram referências mitológicas para muitos artistas urbanos nos dias atuais. A tradição vinculada a pré-história, a tradição francesa do Maio de 68 e a tradição americana vinculada ao Hip Hop perpassam o tempo se fazendo presente nos imaginários de quem intervém na cidade.

Em um segundo momento buscamos identificar a noção de risco para além do estigma do medo, visto como um sinônimo complementar. Aqui o risco é entendido como algo buscado na cidade e como um estilo de vida urbano, em especial para as camadas mais jovens, foco de nossa investigação empírica. Através de nossas experiências de campo de pesquisa, buscamos descrever situações nas quais isso se deu de maneira evidente, a fim de trazer para o debate novos modelos de praticar e narrar a cidade contemporânea.

Por fim, podemos dizer que o risco, enquanto categoria de pesquisa no urbano, traz consigo uma diversidade de personagens, contextos e narrativas. Arriscar-se na urbe pode ser algo extremamente negativo para uma parcela considerável da população que habita grandes metrópoles. Buscamos aqui deixar claro o outro lado da moeda: quando o rico é algo desejado e quando a cidade sem riscos é uma cidade sem cores.

Abalos Júnior: Conceptualización (Conceptualization); Curación de datos (Data curation); Análisis formal (Formal Analysis); Adquisición de Financiamiento (Funding acquisition); Investigación (Investigation); Metodología (Methodology); Administración de proyecto (Project administration); Recursos (Resources); Software (Software); Supervisión (Supervision); Validación (Validation); Visualización (Visualization); Redacción - preparación del borrador original (Writing – original draft); Redacción - revisión y edición (Writing – review & editing). Palhano Cabreira: Conceptualización (Conceptualization); Curación de datos (Data curation); Análisis formal (Formal Analysis); Adquisición de Financiamiento (Funding acquisition); Investigación (Investigation); Metodología (Methodology); Administración de proyecto (Project administration); Recursos (Resources); Software (Software); Supervisión (Supervision); Validación (Validation); Visualización (Visualization); Redacción - preparación del borrador original (Writing – original draft); Redacción - revisión y edición (Writing – review & editing).

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  1. E aqui os grafiteiros -ou writers- se destacam.↩︎

  2. Dentre os principais motivos para instauração de uma crise e uma produção de subúrbios em Nova Iorque esta, certamente, o massivo endividamento público do governo americano, as dinâmicas financeiras e sociais do pós-guerra, a crise do petróleo, a guerra do Vietnam, o caso “Watergate” que gerou a renúncia do presidente Nixon e a corrida nuclear/armamentista.↩︎

  3. Ação subversiva de apropriação dos espaços por meio da pintura.↩︎

QUID 16. Revista del Área de Estudios Urbanos. Área de Estudios Urbanos (Universidad de Buenos Aires, Facultad de Ciencias Sociales, Instituto de Investigaciones Gino Germani).
ISSN-e: 2250-4060.

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